quarta-feira, 22 de agosto de 2012

ENTREVISTA



               CLAUDIA entrevista
 ENSINA-ME A ENTENDER



Fascinada pelofuncionamento da mente. humana, a psiquiatra Ana Beatriz Barbosa Silva mergulha no universo silencioso dos autistas e constata: eles podem nos ajudar a ser pessoas melhores
SIBELLE PEDRAL/FOTOS ANDREA MARQUES


Não adianta ligar para marcar consulta: 

Ana Beatriz Barbo­sa Silva não tem mais horário. Segue atendendo pa­cientes antigos, mas não abre agenda para novos. Quer mais tempo para escrever livros de divulgação cientf­fica, categoria em que é campeã de vendas no pais, com pelo menos 800 mil exemplares vendidos, segundo sua editora, a Objetiva. A psiquiatra carioca de 47 anos ja se debruçou so­bre a mente dos psicopatas, a angus­tia dos ansiosos e 0 inferno do bullying; seu novo trabalho des venda as engrenagens do universo autista. o autismo e um transtorno de desen­volvimento marcado pela dificuldade de socialização e de linguagem e por comportamentos ritualizados e repe­titivos. Calcula-se que uma em cada 166 pessoas tenha algum grau de au­tismo - do mais leve, ou traço, ao mais grave, ou classico. "É muita gente, e muitos nem desconfiam. Sao rotulados de ermitões, mas poderiam viver melhor se tivessem tratamento", conta ela. A doutora vê com sim­patia 0 universo autista. "Nada que eu faça vai ajudar um psicopata a sentir afeto. O autista, não. Ele ape­nas não consegue entender como você pensa, o por que você chora. Mas pode aprender." Escrito a seis mãos com a psicóloga Mayra Bonifácio Gaiato e o psiquiatra Leandro Garcia Lopes, Mundo Singular, Entendendo 0 Au­tismo chega as livrarias em junho e segue a fórmula de sucesso dos tra­balhos anteriores de Ana Beatriz: informações de fácil digestão e urn pu­nhado de histórias tocantes de pacien­tes. Ela recebeu CLAUDIA em seu apartamento no bairro da Gavea para uma conversa que encherá de esperança o coração dos pais de autistas.


Há um aumento no numero de casas de autismo? Por que resolveu abordar isso? Não. 0 que houve foi um aumento na quantidade de diagnósticos. Quando eu me formei, há 23 anos, ninguem falava disso. Chamavam autismo de psicose infantil, referindo-se aquela criança ensimesmada, meio agressiva. O diagnóstico comegou a ser ar­redondado nos anos 1980, e só nos anos 1990 chegou-se a um consenso sobre os sintomas desse transtorno. Por outro lado, constatei que não existia nenhum livro cientifico de divulgação sobre o autismo. Existem muitos relatos de mães de autistas, contando o que foram fazendo intuitivamente, mas nada que sintetize a experiência do trabalho nessa área.


Você escreve sobre os autistas com enorme simpatia. De onde vem esse sentimento? Eu aprendi muito com os autistas. Eles me ensinaram a tolerância, a empatia. A gente os acha diferentes, mas os diferentes somos nós. Eles nascem assim. Por sua dificuldade de socialização, são estrangeiros em qualquer lugar, nós não: estamos num mundo que funciona com os nossos valores, as nossas emoções. Eles nasceram dotados de urn pensa­mento bastante lógico, com pouca ne­cessidade de convivio com o outro, mas com curiosidade sobre ele. O mundo interno do autista é maior e mais tran­quilo do que o externo. Somos cruéis porque queremos que sejam como nós, mas quem esta o tempo todo que­rendo nos agradar são eles. Os autis­tas tem fascinio pelo nosso mundo. 


Mas eles conseguem sair do mundo deles e ficar a vontade no nosso? 
Depende de muita coisa. A começar pelo grau de autismo - o transtorno tem um espectro amplo, que vai des­de a forma classica, muitas vezes com retardo mental, até aquela pes­soa com traços de autismo, mas que passa a vida inteira sem se dar conta disso. Quando estimulados da ma­neira certa, muitos deles conseguem. Tenho urn paciente com autismo gra­ve que é a prova disso. Acompanho Antonio, hoje com 16 anos, desde os 9. As previsões eram péssimas: di­ziam que não iria falar, que não cres­ceria. Levei uns dois anos para ele me dar um abraço - os autistas em geral não toleram contato fisico. Ou­tro dia, ele me perguntou como se beija. Estava interessado numa garota. Peguei uma almofada, fiz urn teatri­nho; falei para aproximar o rosto dele do da menina, tombar a cabeça para "encaixar" ... Treinamos varias vezes. Quando ele voltou ao consultório, per­guntei como tinha sido, e ele respon­deu: "Olha, eu prefiro videogame. Mas acho que não fui mal porque ela não me empurrou. Foi diferente, mas eu vou me acostumar. Eu vou gostar". Foi lindo acompanhar esse processo.


Quais os tratamentos mais eficazes para ajudar o autista a fazer essa travessia? Até os anos 1960, essas crianças eram treinadas para aprender alguns comportamentos: tomar banho, ir ao banheiro sozinhas ... Ai, com a explo­são da psicanálise, tudo o que era treinamento foi descartado, estigma­tizado como pavloviano, adestramen­to. O importante para a psicanalise era descobrir o que motivava certas atitudes para que a criança mudasse de dentro para fora. Mas tudo o que o autista precisa é de treinamento, por­que, sabe-se hoje, o cérebro tem plasticidade: em se malhando, ele se desenvolve. Quando ensinamos uma criança autista a se cuidar, damos a ela a oportunidade de levar uma vida mais digna. O tratamento psicotera­pico, com tecnicas de modificação do comportamento, tem bons resultados. 


O que causa o autismo? 
O que se sabe hoje e que existe urn forte componente genético, mas ainda restam muitas perguntas sem respos­ta. Houve urn tempo em que se dizia que a culpa era da mãe: a criança "fi­cava" autista por causa da frieza de­la, da falta de carinho. Mais tarde, inventou-se que a vacinação causava o autismo, por causa de um conser­vante presente em algumas vacinas. Muita gente parou de vacinar os filhos, o que é uma irresponsabilidade. Ai, sim, corre-se o risco do autismo secundário: a criança nasce saudá­vel, mas tem uma encefalite porque não se preveniu contra sarampo ou catapora; a doença evolui e compro­mete as conexões entre os neurônios, desencadeando sintomas autistas. A testosterona na gravidez também tern trazido novos elementos para a dis­cussão das causas possíveis. A en­trada das mulheres no mercado de trabalho desencadeou situações de enfrentamento, de grande competiti­vidade. Nesse cenário, aumenta a quantidade de testosterona circulando no organismo. Muito tem se falado em como isso pode desencadear doenças, inclusive o autismo. Mas eu ainda acredito no fator genético.


Seu Iivro traz uma lista de 39 características de crianças autistas. Várias delas são comuns na infancia, como cultivar intensamente um interesse - por dinossauros, trens, carrinhos - e ter sono muito agitado. Quantas configuram um diagnstico? Não se trata disso. O autismo é antes de tudo uma maneira de existir, não uma eventualidade. Toda criança vai apresentar muitos desses comporta­mentos - fica zangada, nao quer sair do quarto, muda de humor; a grande diferença é quando isso configura um padrão. A gente tem muita coisa au­tista! Eu, por exemplo, não posso ver seriado americano. Fico fascinada, não consigo parar. Uma vez, comecei a ver episódios de House; passou-se um Carnaval sem que eu me desse conta! Isso é um funcionamento mo­mentâneo autista, mas não significa que eu tenha autismo. Quando se trata de mente, de comportamento humano, o transtorno não está na qualidade, e sim na quantidade. To­dos podemos ser maldosos ás vezes, mas nem por isso somos psicopatas.


Para quem tem filho, urn dos momentos mais angustiantes do livro é quando você menciona a fronteira entre a timidez e a dificuldade de socialização, que pode sina­Iizar o autismo. Como identificar? 
o autismo é muito mais do que a ti­midez. Primeiro porque os indícios do transtorno se manifestam cedo: antes dos 3 anos, já é possivel ver si­nais claros e fechar um diagnóstico. Uma mãe treinada percebe ao ama­mentar:o bebe autista rejeita o con­tato fisico, nao gosta do colo, do pei­to. Um dia, numa palestra em Brasi­lia, uma mulher levantou a mão na plateia e me perguntou se era possi­vel que o filho a detestasse. Ela des­creveu que ele, desde pequeno, não gostava que o tocasse nem de mamar no peito. Eu, ingenuamente, impulsivamente, disse: "Converse com o pe­diatra que pode ser autismo". Aquela mãe levou um susto, foi embora. Me­ses depois ela me mandou um e-mail agradecendo. No caso da timidez, quando as crianças são pequenas e estão descobrindo o universo, elas falam que nem papagaios. A timidez legítima começa depois dos 6, 7 anos, quando se inicia o ensino fundamental. O tímido tem vontade de interagir, mas tem vergonha. Dá si­nais fisicos disso: fica vermelho, ta­quicardico, e um ansioso, sofre fisi­camente. Numa festa de aniversario, sofre ao ser o centro das atenções, na hora dos parabéns, por exemplo. Já se uma mãe faz uma mega festa de aniversário para urn autista, e bem capaz de ele ir para o quarto jogar no computador. A mãe pergunta: "Você não esta feliz?", e ele diz que sim - e está mes­mo, porque o game e mais interessante.


Tem muita gente com traços de autismo por ai, sofrendo a toa, quando poderia encontrar ajuda numa terapia adequada? Sim! Elas tem nitidamente grande dificuldade de se relacionar e de ler o outro. Sofrem a vida toda sem entender por que não agradam. Tenho um colega, psiquiatra, que começou a namorar uma amiga comum. Um dia, ela foi a casa dele e disse: "Estou tão cansada, quero fechar os olhos e dor­mir". Ele fez um chá para ela, deitou de lado e dormiu. E ela estava fazendo charme! No dia seguinte a moça quis saber: "Você não estava a fim de mim ontem?" Ele respondeu que sim, mas que ela queria dormir, e ele acatou seu desejo. Esse colega tern traço, pensei na hora. São pessoas muito inteligentes  objetivas, tern fixação em certo assunto e, portanto, acabam sendo muito boas naquilo. Mas são literais, não percebem segundas intenções. E são incapazes de mentir. 


Qual foi o maior progresso que você já alcançou no tratamento de autistas? Minha maior vitória é receber o abraço espontâneo de um autista. Já re­cebi muitos. Mas há tantas histórias lindas. Uma delas talvez seja a de Helena, uma adolescente de 16 anos, autista, que eu atendi. Filha de uma família abastada, essa menina perce­beu que o pai abusava sexualmente da irmã de 6 anos e me pediu ajuda. No consultório, ela andava em círcu­los, agitada, tentando fugir do assunto, mas sabendo que em alguma hora teria que me contar. Superou suas limitações pelo bem da irmã e depôs contra o pai num tribunal. Ele tentou desacredita-la alegando que o depoimento de uma menina autista não tinha validade. Eu então pedi para testemu­nhar, explicando a juiza que a palavra dela era fidedigna justamente porque era autista - e os autistas não mentem. Hoje esse pai pedófilo é mantido longe das filhas graças a ela. Eu me tornei uma pessoa melhor por causa de pa­cientes como essa menina.  









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