CLAUDIA entrevista
ENSINA-ME A ENTENDER
Fascinada
pelofuncionamento da mente. humana, a psiquiatra Ana Beatriz Barbosa Silva mergulha no universo silencioso dos autistas e constata: eles podem nos
ajudar a ser pessoas melhores
SIBELLE PEDRAL/FOTOS ANDREA MARQUES
Ana Beatriz Barbosa Silva não tem mais horário. Segue atendendo pacientes antigos, mas não abre agenda para novos. Quer mais tempo para escrever livros de divulgação cientffica, categoria em que é campeã de vendas no pais, com pelo menos 800 mil exemplares vendidos, segundo sua editora, a Objetiva. A psiquiatra carioca de 47 anos ja se debruçou sobre a mente dos psicopatas, a angustia dos ansiosos e 0 inferno do bullying; seu novo trabalho des venda as engrenagens do universo autista. o autismo e um transtorno de desenvolvimento marcado pela dificuldade de socialização e de linguagem e por comportamentos ritualizados e repetitivos. Calcula-se que uma em cada 166 pessoas tenha algum grau de autismo - do mais leve, ou traço, ao mais grave, ou classico. "É muita gente, e muitos nem desconfiam. Sao rotulados de ermitões, mas poderiam viver melhor se tivessem tratamento", conta ela. A doutora vê com simpatia 0 universo autista. "Nada que eu faça vai ajudar um psicopata a sentir afeto. O autista, não. Ele apenas não consegue entender como você pensa, o por que você chora. Mas pode aprender." Escrito a seis mãos com a psicóloga Mayra Bonifácio Gaiato e o psiquiatra Leandro Garcia Lopes, Mundo Singular, Entendendo 0 Autismo chega as livrarias em junho e segue a fórmula de sucesso dos trabalhos anteriores de Ana Beatriz: informações de fácil digestão e urn punhado de histórias tocantes de pacientes. Ela recebeu CLAUDIA em seu apartamento no bairro da Gavea para uma conversa que encherá de esperança o coração dos pais de autistas.
Há um aumento no numero de casas de autismo? Por que resolveu abordar isso? Não. 0 que houve foi um aumento na quantidade de diagnósticos. Quando eu me formei, há 23 anos, ninguem falava disso. Chamavam autismo de psicose infantil, referindo-se aquela criança ensimesmada, meio agressiva. O diagnóstico comegou a ser arredondado nos anos 1980, e só nos anos 1990 chegou-se a um consenso sobre os sintomas desse transtorno. Por outro lado, constatei que não existia nenhum livro cientifico de divulgação sobre o autismo. Existem muitos relatos de mães de autistas, contando o que foram fazendo intuitivamente, mas nada que sintetize a experiência do trabalho nessa área.
Você escreve sobre os autistas com enorme simpatia. De onde vem esse sentimento? Eu aprendi muito com os autistas. Eles me ensinaram a tolerância, a empatia. A gente os acha diferentes, mas os diferentes somos nós. Eles nascem assim. Por sua dificuldade de socialização, são estrangeiros em qualquer lugar, nós não: estamos num mundo que funciona com os nossos valores, as nossas emoções. Eles nasceram dotados de urn pensamento bastante lógico, com pouca necessidade de convivio com o outro, mas com curiosidade sobre ele. O mundo interno do autista é maior e mais tranquilo do que o externo. Somos cruéis porque queremos que sejam como nós, mas quem esta o tempo todo querendo nos agradar são eles. Os autistas tem fascinio pelo nosso mundo.
Mas eles conseguem sair do mundo deles e ficar a vontade no nosso?
Depende de muita coisa. A começar pelo grau de autismo - o transtorno tem um espectro amplo, que vai desde a forma classica, muitas vezes com retardo mental, até aquela pessoa com traços de autismo, mas que passa a vida inteira sem se dar conta disso. Quando estimulados da maneira certa, muitos deles conseguem. Tenho urn paciente com autismo grave que é a prova disso. Acompanho Antonio, hoje com 16 anos, desde os 9. As previsões eram péssimas: diziam que não iria falar, que não cresceria. Levei uns dois anos para ele me dar um abraço - os autistas em geral não toleram contato fisico. Outro dia, ele me perguntou como se beija. Estava interessado numa garota. Peguei uma almofada, fiz urn teatrinho; falei para aproximar o rosto dele do da menina, tombar a cabeça para "encaixar" ... Treinamos varias vezes. Quando ele voltou ao consultório, perguntei como tinha sido, e ele respondeu: "Olha, eu prefiro videogame. Mas acho que não fui mal porque ela não me empurrou. Foi diferente, mas eu vou me acostumar. Eu vou gostar". Foi lindo acompanhar esse processo.
Quais os tratamentos mais eficazes para ajudar o autista a fazer essa travessia? Até os anos 1960, essas crianças eram treinadas para aprender alguns comportamentos: tomar banho, ir ao banheiro sozinhas ... Ai, com a explosão da psicanálise, tudo o que era treinamento foi descartado, estigmatizado como pavloviano, adestramento. O importante para a psicanalise era descobrir o que motivava certas atitudes para que a criança mudasse de dentro para fora. Mas tudo o que o autista precisa é de treinamento, porque, sabe-se hoje, o cérebro tem plasticidade: em se malhando, ele se desenvolve. Quando ensinamos uma criança autista a se cuidar, damos a ela a oportunidade de levar uma vida mais digna. O tratamento psicoterapico, com tecnicas de modificação do comportamento, tem bons resultados.
O que causa o autismo?
O que se sabe hoje e que existe urn forte componente genético, mas ainda restam muitas perguntas sem resposta. Houve urn tempo em que se dizia que a culpa era da mãe: a criança "ficava" autista por causa da frieza dela, da falta de carinho. Mais tarde, inventou-se que a vacinação causava o autismo, por causa de um conservante presente em algumas vacinas. Muita gente parou de vacinar os filhos, o que é uma irresponsabilidade. Ai, sim, corre-se o risco do autismo secundário: a criança nasce saudável, mas tem uma encefalite porque não se preveniu contra sarampo ou catapora; a doença evolui e compromete as conexões entre os neurônios, desencadeando sintomas autistas. A testosterona na gravidez também tern trazido novos elementos para a discussão das causas possíveis. A entrada das mulheres no mercado de trabalho desencadeou situações de enfrentamento, de grande competitividade. Nesse cenário, aumenta a quantidade de testosterona circulando no organismo. Muito tem se falado em como isso pode desencadear doenças, inclusive o autismo. Mas eu ainda acredito no fator genético.
Seu Iivro traz uma lista de 39 características de crianças autistas. Várias delas são comuns na infancia, como cultivar intensamente um interesse - por dinossauros, trens, carrinhos - e ter sono muito agitado. Quantas configuram um diagnstico? Não se trata disso. O autismo é antes de tudo uma maneira de existir, não uma eventualidade. Toda criança vai apresentar muitos desses comportamentos - fica zangada, nao quer sair do quarto, muda de humor; a grande diferença é quando isso configura um padrão. A gente tem muita coisa autista! Eu, por exemplo, não posso ver seriado americano. Fico fascinada, não consigo parar. Uma vez, comecei a ver episódios de House; passou-se um Carnaval sem que eu me desse conta! Isso é um funcionamento momentâneo autista, mas não significa que eu tenha autismo. Quando se trata de mente, de comportamento humano, o transtorno não está na qualidade, e sim na quantidade. Todos podemos ser maldosos ás vezes, mas nem por isso somos psicopatas.
Para quem tem filho, urn dos momentos mais angustiantes do livro é quando você menciona a fronteira entre a timidez e a dificuldade de socialização, que pode sinaIizar o autismo. Como identificar?
o autismo é muito mais do que a timidez. Primeiro porque os indícios do transtorno se manifestam cedo: antes dos 3 anos, já é possivel ver sinais claros e fechar um diagnóstico. Uma mãe treinada percebe ao amamentar:o bebe autista rejeita o contato fisico, nao gosta do colo, do peito. Um dia, numa palestra em Brasilia, uma mulher levantou a mão na plateia e me perguntou se era possivel que o filho a detestasse. Ela descreveu que ele, desde pequeno, não gostava que o tocasse nem de mamar no peito. Eu, ingenuamente, impulsivamente, disse: "Converse com o pediatra que pode ser autismo". Aquela mãe levou um susto, foi embora. Meses depois ela me mandou um e-mail agradecendo. No caso da timidez, quando as crianças são pequenas e estão descobrindo o universo, elas falam que nem papagaios. A timidez legítima começa depois dos 6, 7 anos, quando se inicia o ensino fundamental. O tímido tem vontade de interagir, mas tem vergonha. Dá sinais fisicos disso: fica vermelho, taquicardico, e um ansioso, sofre fisicamente. Numa festa de aniversario, sofre ao ser o centro das atenções, na hora dos parabéns, por exemplo. Já se uma mãe faz uma mega festa de aniversário para urn autista, e bem capaz de ele ir para o quarto jogar no computador. A mãe pergunta: "Você não esta feliz?", e ele diz que sim - e está mesmo, porque o game e mais interessante.
Tem muita gente com traços de autismo por ai, sofrendo a toa, quando poderia encontrar ajuda numa terapia adequada? Sim! Elas tem nitidamente grande dificuldade de se relacionar e de ler o outro. Sofrem a vida toda sem entender por que não agradam. Tenho um colega, psiquiatra, que começou a namorar uma amiga comum. Um dia, ela foi a casa dele e disse: "Estou tão cansada, quero fechar os olhos e dormir". Ele fez um chá para ela, deitou de lado e dormiu. E ela estava fazendo charme! No dia seguinte a moça quis saber: "Você não estava a fim de mim ontem?" Ele respondeu que sim, mas que ela queria dormir, e ele acatou seu desejo. Esse colega tern traço, pensei na hora. São pessoas muito inteligentes objetivas, tern fixação em certo assunto e, portanto, acabam sendo muito boas naquilo. Mas são literais, não percebem segundas intenções. E são incapazes de mentir.
Tem muita gente com traços de autismo por ai, sofrendo a toa, quando poderia encontrar ajuda numa terapia adequada? Sim! Elas tem nitidamente grande dificuldade de se relacionar e de ler o outro. Sofrem a vida toda sem entender por que não agradam. Tenho um colega, psiquiatra, que começou a namorar uma amiga comum. Um dia, ela foi a casa dele e disse: "Estou tão cansada, quero fechar os olhos e dormir". Ele fez um chá para ela, deitou de lado e dormiu. E ela estava fazendo charme! No dia seguinte a moça quis saber: "Você não estava a fim de mim ontem?" Ele respondeu que sim, mas que ela queria dormir, e ele acatou seu desejo. Esse colega tern traço, pensei na hora. São pessoas muito inteligentes objetivas, tern fixação em certo assunto e, portanto, acabam sendo muito boas naquilo. Mas são literais, não percebem segundas intenções. E são incapazes de mentir.
Qual foi o maior progresso que você já alcançou no tratamento de autistas? Minha maior vitória é receber o abraço espontâneo de um autista. Já recebi muitos. Mas há tantas histórias lindas. Uma delas talvez seja a de Helena, uma adolescente de 16 anos, autista, que eu atendi. Filha de uma família abastada, essa menina percebeu que o pai abusava sexualmente da irmã de 6 anos e me pediu ajuda. No consultório, ela andava em círculos, agitada, tentando fugir do assunto, mas sabendo que em alguma hora teria que me contar. Superou suas limitações pelo bem da irmã e depôs contra o pai num tribunal. Ele tentou desacredita-la alegando que o depoimento de uma menina autista não tinha validade. Eu então pedi para testemunhar, explicando a juiza que a palavra dela era fidedigna justamente porque era autista - e os autistas não mentem. Hoje esse pai pedófilo é mantido longe das filhas graças a ela. Eu me tornei uma pessoa melhor por causa de pacientes como essa menina.
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